O Vingador do Futuro, Minority Report e Blade Runner. Todos esses filmes famosos possuem algo em comum: São baseados em obras de Philip K. Dick. O autor aparentemente não é muito cultuado no Brasil, mas é um dos grandes escritores de ficção científica do Século XX. Os conceitos que ele criou e explorou em suas obras, muitas vezes para analisar o comportamento do ser humano, são interessantíssimos e nos fazem refletir sobre o que somos e como pensamos. Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? É um ótimo exemplo disso.
Rick Deckard é um caçador de recompensas. Ele vive em um mundo que foi devastado pela guerra atômica, no qual a maioria da população que sobreviveu migrou para as colônias interplanetárias. Em uma São Francisco decadente, infestada pela poeira radioativa que matou inúmeras espécies de seres vivos, ele tenta ganhar a vida aposentando (ou melhor, matando) androides e tem como grande objetivo de vida possuir um animal vivo, para substituir sua ovelha elétrica e assim obter o status que tal posse proporciona. Ao aceitar capturar seis androides fugitivos pertencentes a um novo modelo, ele questionará suas próprias convicções ao perceber que a linha entre o real e o fabricado não é tão nítida quanto ele acreditava.
Se você já assistiu ao clássico Blade Runner, que é baseado neste livro, já deve conhecer essa história. Claro que há diferenças, pois enquanto K. Dick explora conceitos para estabelecer analogias com o comportamento humano, a narrativa de Ridley Scott imprime uma ação mais continua e que tem muito mais o objetivo de entreter do que filosofar. Ambas as histórias são interessantes, mas, por mais que muitas pessoas prefiram o filme neste caso, eu não fujo do clichê e acho o livro superior.
O Deckard de K. Dick é uma figura excessivamente humana, diferente de sua contraparte no cinema. Diferente da dúvida plantada por Ridley Scott sobre Deckard ser um replicante, Dick realça suas características humanas, mostra que ele sente empatia por tudo inclusive pelos replicantes e sua abordagem física e psicológica não segue o padrão galã de Harrison Ford. Também são abordados seus dramas, seu desejo para possuir um animal real e assim ser alguém perante a sociedade, seus conflitos com a esposa, a necessidade de induzir emoções, sua dúvida perante a fé em Mercer (a figura messiânica desse universo). Todos esses elementos o tornam um personagem extremamente crível.
Rachel Rosan é uma personagem muito mais ativa no livro do que no filme, ajudando Deckard a capturar os replicantes fugitivos e mexendo com sua mente de diversas formas, inclusive desenvolvendo uma espécie de relação amorosa que é muito mais intensa no filme. J. R. Isidore, um Especial cabeça de galinha (como são chamados os humanos que foram afetados pela radiação) é um religioso fervoroso e que sofre com o desprezo da sociedade por sua condição mental, mas que ao conhecer os replicantes se sente rodeado de amigos e resolve ajuda-los a qualquer custo. Este personagem é bem diferente de sua contraparte presente no filme, rebatizada de J. R. Sebastian, que resolve ajudar os replicantes porque possui uma doença que o faz envelhecer depressa e se identifica com as criaturas artificiais devido ao seu curto tempo de vida (4 anos).
Roy Baty é um personagem mais interessante em sua versão cinematográfica do que no livro. Enquanto o personagem do livro é mais frio, manipulador e morre de forma pouco grandiosa, o personagem do filme atrai o telespectador em sua busca por viver mais tempo, em ter uma vida de verdade. Além disso, muito pela excelente atuação de Rutger Hauer, em Blade Runner o personagem tem um dos discursos mais marcantes e filosóficos da história do cinema, que te faz sentir a morte de Roy como se ele fosse a criatura mais viva do filme, ou seja, de certa forma atingindo seu objetivo.
O livro possuí várias nuances não abordadas no filme, porém gostaria de destacar duas delas. A primeira é o desejo de Deckard possuir um animal vivo e o quanto isso é importante na sociedade em que ele vive. É possível fazer uma analogia muito clara nos dias de hoje, em como, por exemplo, um Iphone pode trazer uma certa noção de status para o seu dono. O quanto uma posse ou a capacidade em criar algo vivo pode definir uma pessoa? É uma interessante reflexão. O segundo ponto que gostaria de destacar é o mercerismo, religião criada e liderada por Wilbur Mercer, uma figura que evoca sofrimento e reflexão. Esta religião manipula a população de certa forma e as faz esquecer do fato de que o mundo em que vivem está em uma situação deplorável. É uma questão interessante mas acho que K. Dick não a desenvolve de maneira satisfatória durante a narrativa, mesmo que ela tenha função fundamental no encerramento da trama de Deckard.
A edição da Aleph possui um excelente acabamento e a capa com um efeito pontilhado que esconde o nome do autor de acordo com a distância transmite bem o clima de sua obra. Os extras são excelentes, tanto a última entrevista de Dick (que nos mostra o quanto ele estava animado para ver o filme e nos deixa triste por saber que ele morreu antes de poder ver a obra concluída), quanto pelo excelente posfácio escrito por Ronaldo Bressane, que apresenta ótimas reflexões sobre a obra e seus personagens.
Eu recomendo que você leia esta obra, principalmente se for fã do filme, e perceba o quão genial é Philip K. Dick e em como ele deveria ser mais lembrado entre os grandes nomes da ficção científica. Uma abordagem mais profunda e filosófica sobre a jornada de Rick Deckard expandirá a sua experiência com este universo. Espero que a continuação de Blade Runner, programada para este ano, traga ainda mais elementos criados por K.Dick.
Ficha Técnica
Editora : Aleph
Ano de lançamento:2014
Páginas:272
Preço:R$39,90
Onde encontrar:Livrarias e lojas especializadas
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Lucas Araújo
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