Osamu Tezuka é chamado de O Deus do mangá. Não há como negar esse título ao autor, visto sua importância na difusão do quadrinho e da animação japonesa pelo mundo, com técnica e estilo que representam o que conhecemos como mangá moderno. É impressionante a quantidade de obras que Tezuka produziu e a variedade de gêneros pelos quais ele transitou. Ele é conhecido por obras mais infantis, como Astro Boy e Kimba, mas também por obras maduras, tendo grande importância na ascensão do gekigá, o gênero voltado à leitores adultos, no mercado de quadrinhos japonês. Ayako, publicada por aqui pela editora Veneta, é um desses exemplos.
Jiro Tenge, filho de uma das mais tradicionais famílias aristocráticas do Japão, retorna para casa após passar anos como prisioneiro dos americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Embora o conflito bélico tenha sido encerrado, o Japão sofre suas consequências e Jiro ainda possui ligações com agentes externos. Após descobrir um terrível segredo envolvendo seu pai, irmão e cunhada e realizar um crime que pode manchar a imagem da família Tenge para sempre, ele resolve fugir e, para encobrir seus rastros, os Tenge decidem que a pequena Ayako terá de pagar pelos pegados de toda família, permanecendo presa durante 20 anos.
Tezuka usa a história dos Tenge para contar a história do Japão no pós-guerra, algo que ele mesmo vivenciou na pele, tendo visto todo o sofrimento pelo qual o povo japonês passou durante a guerra e também como a sociedade foi transformada, com forte influência dos EUA. A cultura de submissão do derrotado perante ao vencedor, milenar naquela terra, foi diretamente responsável por essa transformação.
Ayako possui vários paralelos entre o que Tezuka viveu em sua juventude, durante o período no qual a história se passa, e com o período no qual a história foi produzida, no início dos anos 70. A repressão que a esquerda do país sofria junto à ascensão do conservadorismo criou um cenário político conturbado no Japão, que foi refletido em sua produção artística. Enquanto o governo dizia que os autores deveriam produzir tramas mais inofensivas, usando os trabalhos mais infantis de Tezuka como referência, o próprio autor buscou ser contra tudo aquilo, buscando produzir obras mais experimentais e maduras e propiciando a oportunidade para que outros autores fizessem o mesmo, criando a revista COM no ano de 1967. Nomes como Katsuhiro Otomo, autor de Akira, publicaram na revista e referenciam o papel de Tezuka como mangaká e animador.
Ao construir uma narrativa intrincada, na qual aborda o cenário político pós-guerra sob a perspectiva de uma família tradicional e mostra como esses membros da sociedade reagiram às profundas transformações pelas quais o Japão passou, Tezuka tece críticas contundentes que ainda permanecem atuais quase cinquenta anos após a publicação do mangá. Há de tudo na história, desde espionagem até uma jornada de autodescoberta e a análise da pobreza moral que as classes mais ricas possuem em abundância.
Há também uma reflexão sobre o espírito japonês, com Ayako representando seu estado mais puro, já que por ter ficado presa por tanto tempo, ela não foi manchada por todo o caos que aconteceu durante aqueles vinte anos. Quando ela finalmente é libertada, é como se Tezuka dissesse que depois de todos aqueles anos de longo sofrimento, o Japão pode voltar a ser o que tem de melhor.
É claro que uma história tão profunda e magistral teria de ser acompanhada de uma arte de mesmo nível, e nesse quesito Tezuka demonstra porque é um dos maiores quadrinistas de todos os tempos. Ele apresenta seu traço característico, mais cartunesco em contraste com um cenário realista, mas com um estilo mais sombrio que combina perfeitamente com a história. É impressionante como, mesmo com os prazos apertados no qual a indústria japonesa trabalha, ele conseguiu fazer interessantes experimentos, alternando o estilo de seu traço para algo mais realista em alguns momentos e cadenciando sua narrativa, que possui fortes aspectos cinematográficos, conforme a necessidade. Há alguns pequenos deslizes de proporção em alguns quadros, mas compreensíveis devido à rapidez com a qual ele tinha que entregar as páginas e que não diminuem de forma alguma sua genialidade. Muito do que se vê aqui influencia artistas até hoje.
A edição da Veneta possui capa dura e papel pólem de ótima qualidade, que ressalta cada detalhe da arte de Tezuka. Como extras, há um completíssimo prefácio escrito por Rogério de Campos, que considero o melhor editor do país e que é um dos responsáveis por termos a publicação de mangás no Brasil, no qual ele contextualiza o cenário do Japão pós-guerra, as consequências do conflito e quais foram as motivações para que o autor produzisse a obra. Há ainda um final alternativo, que foi publicado quando a história saiu originalmente nas páginas da revista Big Comic, da editora Shogakukan, e um posfácio escrito por Tezuka no qual ele comenta a produção da obra e diz que ela é um prólogo para algo muito maior, que ele pretendia contar algum dia. Infelizmente, não conseguiu fazê-lo antes de seu precoce falecimento aos 60 anos em 1989.
Ayako é muito mais que um quadrinho, é uma análise da sociedade japonesa feita por um de seus mais talentosos autores em seu auge criativo. Uma leitura que fica com você depois de ser concluída, que te deixa pensando o que poderia acontecer. Leia, seja transformado pelo trabalho de Osamu Tezuka e eu garanto que você não vai querer parar por aqui. Felizmente, ele teve uma carreira muito prolífica, cabe às editoras brasileiras trazerem mais trabalhos desse gênio para cá. Os leitores iriam agradecer.
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Ficha técnica
Editora: Veneta
Tradução: Marcelo Yamashita Salles e Esther Sumi
Ano de lançamento: 2018
Páginas: 720
Preço: R$139,90
Lucas Araújo
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