Tenho a impressão que nos últimos tempos o termo “clássico” foi banalizado, visto que tem sido usado para classificar algo que simplesmente fica acima da média, que foge pouco do comum. Entretanto, há obras que só podem ser definidas por esse termo, seja pelo seu impacto, influência ou qualidade e, sem sombra de dúvidas, O Eternauta, quadrinho escrito por Héctor Germán Oesterheld e desenhado por Francisco Solano López, é um desses casos, aliás, deveria estar listado como significado dessa palavra no dicionário.
Ambientado em Buenos Aires no final dos anos 1950, o quadrinho começa com um roteirista, que logo percebemos ser um alter ego de Oesterheld, recebendo a visita de um homem que simplesmente se materializa na frente dele. Espantado e curioso, esse roteirista ouve todo o relato desse misterioso sujeito, que se chama Juan Salvo e se denomina como Eternauta, o viajante da eternidade. O relato de Salvo é chocante: ele diz que em breve Buenos Aires será assolada por uma nevasca fluorescente capaz de matar tudo que toca, que inicialmente possuía origem desconhecida, mas que a humanidade logo descobre ser obra de uma invasão alienígena com o objetivo de dominar todo o planeta terra. Salvo se une a um grupo de amigos para tentar sobreviver essa invasão, sendo que a cada dia que passa novos perigos aparecem, o desespero consome sua mente e parece não haver saída para aquela situação. Mas como esse homem sabe de tudo isso sobre o futuro? Como ele voltou ao passado? A humanidade conseguiu superar a invasão? Bom, você vai ter que ler para descobrir.
Já mencionei isso em textos anteriores e é uma opinião compartilhada por diversos leitores, mas é sempre importante pontuar: Oesterheld é um dos maiores autores que já existiram. Veja, enfatizo a palavra autor e não quadrinista porque considero que seu trabalho transcende essa mídia, o argentino é um dos seres humanos mais habilidosos que já organizaram palavras em uma sentença em qualquer tipo de mídia que você imaginar, é impressionante como seu texto é refinado, envolvente, prende a atenção do leitor em cada quadro e que em nenhum momento é redundante, sempre se mescla a arte e produz um impacto ímpar. Ele sabe como construir o mistério, manter o leitor ansioso por respostas e cadenciar o ritmo da história em momentos de ação e outros mais introspectivos, que mostram grande conhecimento da psique humana. Uma obra que foi escrita entre 1957 e 1959 se mantém atual porque podemos traçar alguns paralelos até hoje, por exemplo ,podemos de certa forma comparar a situação que os personagens enfrentam com relação à nevasca mortal e a que passamos durante a pandemia.
É claro que, em meio a tudo isso, é impossível desconsiderar o forte conteúdo político da obra, Oesterheld tem mensagens muito claras sobre o conturbado cenário pelo qual a Argentina passava na época, que iria descambar em uma sequência de golpes militares nos anos seguintes, e também sobre o imperialismo que sempre assombrou a América Latina, algo que é perceptível até hoje, e qualquer forma de autoritarismo (o que é, infelizmente, também é muito atual, basta ver as notícias sobre uma recente tentativa de golpe de estado por aqui). É triste que esse forte apelo político de suas obras, acentuado cada vez mais ao longo dos anos (visto o que é mostrado na versão de Eternauta de 1969), custou a vida do autor e de suas quatro filhas, que foram brutalmente assassinados pela ditadura argentina e seus corpos até hoje não foram encontrados. Não é à toa que até hoje o Eternauta é usado como símbolo em protestos na Argentina.
E se há todo esse simbolismo da obra até os dias de hoje, também se deve ao trabalho de Francisco Solano López, que não há como ser definido por outra palavra que não seja brilhante. Com um estilo clássico mais voltado para o realismo, López faz um trabalho poderoso de expressões, é sempre possível saber o que um personagem está sentindo ou pensando apenas olhando para seu rosto, mesmo que não haja um balão de fala sequer. Na verdade, até somente pelos olhos é possível saber como eles se sentem, basta ver as icônicas imagens nos personagens nos trajes de mergulho, é uma coisa realmente impressionante. Não só nesse aspecto, mas também com relação aos cenários, com fiéis reproduções de pontos de Buenos Aires, como o Monumental de Núñez, estádio do River Plate, no qual parte da história se passa. E, sobre a questão narrativa, chama a atenção também como o artista estava a frente de seu tempo, com uma fluidez incomparável com outras publicações da mesma época em outros lugares do mundo, basta ver, por exemplo, o que era feito nos EUA no mesmo período.
A edição da Pipoca & Nanquim é belíssima, fazendo juz à obra, com capa dura, um efeito de corte na capa, sobrecapa e papel offset. Com relação aos extras, há um ótimo prefácio do pesquisador Rafael Machado Costa, do excelente canal do youtube Ilha Kaijuu, em que é contextualizada a publicação da obra e sua importância, além de biografias dos autores. É importante mencionar que o quadrinho já havia sido publicado por aqui em 2012 pela editora Martins Fontes, mas essa nova edição possui arquivos remasterizados que fazem uma enorme diferença na apreciação da arte de Francisco Solano López. Infelizmente nem todas as páginas foram encontradas para serem remasterizadas e ainda há algumas que foram escaneadas de outras publicações, o que faz com que sejam um pouco mais escuras e sem definição.
Se eu pudesse resumir todo esse texto em uma frase seria: Leia O Eternauta. Leitura indispensável também é um termo que foi banalizado de certa forma, mas não há como indicar esse quadrinho de outra forma. Este é o resultado da união de dois gigantes que produziram uma obra atemporal, que manteve sua importância nos últimos 60 anos e que a preservará nos próximos 600. Você ouvirá muito sobre a obra pois há uma adaptação da Netflix programada para estrear em 2025, pela qual já estou ansioso, mas eu sempre indico que você corra atrás do material original. Como disse no início do texto, esse é simplesmente um clássico na acepção da palavra.
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Ficha Técnica
Editora: Pipoca e Nanquim
Tradução: Letícia Ribeiro Carvalho
Ano de lançamento: 2024
Páginas: 372
Preço: R$219,90
Lucas Araújo
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