Em 1971, uma das críticas de cinema mais célebres dos Estados Unidos, Pauline Kael, escreve um artigo intitulado: Raising Kane. Ali, ela defende a ideia de que o verdadeiro autor do roteiro de Cidadão Kane (1941), considerado um dos melhores filmes da história, é Herman J. Mankiewicz. Ela alega que praticamente todo o roteiro já estava pronto quando as gravações começaram. Contudo, as informações que ela utiliza para embasar sua teoria são, muitas vezes, fatos distorcidos ou falsos. Apesar de elogiável sua atitude em trazer de volta à História o nome de Mank, que foi eclipsado pelo magnetismo de Orson Welles, é injustificável.
O roteiro de Cidadão Kane passou por sete versões até chegar a sua última. Em um artigo fantástico escrito na década de 1990 por Robert Carringer, encontramos detalhes sobre todas as versões do texto, que estão presentes nos arquivos da RKO Radio Pictures. Welles cortou e adicionou cenas durante as diversas revisões, além de modificações feitas durante ensaios e nas próprias gravações. Era surpreendente, até para velhos colaboradores, a forma com a qual o cineasta fazia essas mudanças de forma tão rápida. Ele, como escreveu Carringer, descartava e realocava cenas diversas vezes até conseguir o que queria.
É com essa polêmica envolvendo a autoria de Cidadão Kane que Jack Fincher, pai de David Fincher, escreveu o roteiro de Mank em 1990. O longa-metragem conta a história desse homem problemático e alcoólatra que foi esquecido pela história enquanto escreve, em sessenta dias, o roteiro daquele que seria considerado o melhor filme da história pela American Film Institute. Além disso, o filme ainda traz figuras que inspiraram o roteirista: o milionário William Randolph Hearst e sua esposa Marion Davies, que manteve uma amizade com Mankiewicz; ou o diretor-chefe da MGM, Louis B. Mayer.
Em uma das melhores sequências do filme (senão a melhor), aquela em que Louis B. Mayer vai falar com seus funcionários, acompanhamos em um travelling em contra-plongée (câmera em movimento com enquadramento de baixo para cima) o chefe dos estúdios acompanhado de Mankiewicz e seu irmão. Mank está posicionado mais atrás e do lado esquerdo, uma representação imagética da posição do “apenas um roteirista” no mundo dos estúdios: desimportante, a ponto de ser descartável de certa forma. Ali, Mayer menciona que gasta milhões com filmes que não serão produzidos porque lhes faltam emoção. Esse substantivo abstrato é um equivalente às perturbações químicas que nosso corpo sofre e o cinema é uma das forças motrizes na produção de tal sentimento. O que encontramos em Mank é um antônimo disso: o desinteresse.
Uma figura tão interessante como Mank ganha um tratamento apático que, se inicialmente ainda desperta algum ímpeto em conhecê-lo, logo dilui-se numa opção narrativa que não se justifica: o flashback. Se em Cidadão Kane o uso desse formato foi inovador ao que se fazia na época e acrescenta camadas em um personagem que flerta com o épico, aqui torna-se maçante. O filme soa quase como um macaco enjaulado em um palácio. Explico: Fincher é um diretor que sempre busca criticar através de sutilezas, mas opta pelo básico em boa parte da projeção. As discussões acerca do poderio dos estúdios, sobre as influências políticas e, até mesmo, a polêmica infantil dos bastidores de Cidadão Kane não empolgam.
O longa-metragem, então, em seus dez minutos finais, resolve trazer a “disputa” entre Mankiewicz e Welles numa discussão que beira o artificial e o risível, retomando uma linha narrativa que não nem estava em segundo plano. Mank conta com uma bela fotografia (que mescla o artificialismo da época, com a modernidade de Fincher), com um excelente desenho de som, permitindo que qualquer um que feche os olhos tenha a sensação de estar ouvindo um filme dos anos 40, e uma atuação incisiva de Amanda Seyfried como Marion Davies. Mas, infelizmente, perde-se em suas diversas escolhas estéticas e narrativas.
Sem sombra de dúvidas, será um filme fartamente indicado às premiações e pode sair com muitos deles. Mas uma pena que Fincher possa ganhar seu primeiro Oscar em um trabalho que não faz jus a sua carreira que conta com Seven (1995) e Zodíaco (2007), dois dos grandes filmes do cinema estadunidense.
O filme está disponível na Netflix.
Montez Olivero
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