Preferência do Sistema – Qual é o papel da arte?

A arte tem papel essencial em uma sociedade. A produção artística ajuda na discussão de ideias e em como a humanidade pode evoluir em uma determinada direção, funcionando também como protesto e crítica em certos momentos. Em uma era de produção de conteúdo cada vez mais descartável, a arte se torna ainda mais relevante para a manutenção da nossa cultura. É esse aspecto da nossa sociedade que Ugo Bienvenu procura analisar em Preferência do Sistema, quadrinho escrito e desenhado por ele e publicado por aqui pela editora Comix Zone.

A sinopse da obra é a seguinte: Em 2120, o recurso essencial é a memória virtual. Com milhões de gigabytes consumidos pelas redes sociais, não há espaço para mais dados. Quem decide o que apagar são os “profetas”, uma espécie de polícia que define o destino de milhares de obras culturais. Yves, um arquivista, tem a tarefa de tentar defender certos dados, cuja perda considera dramática para o patrimônio da humanidade. Mas está ficando cada vez mais difícil frear a destruição das informações e ele não suporta a ideia de ver obras-primas como 2001: Uma Odisseia no Espaço desaparecerem para sempre. Para salvá-los do esquecimento, Yves decide armazenar ilegalmente esses dados em seu robô doméstico, Mikki, que também carrega sua filha ainda não nascida. Porém, as coisas não são tão simples: as autoridades percebem suas atividades clandestinas e vão atrás dele.

Ugo Bienvenu é um dos principais nomes da atual produção de ficção científica francesa em quadrinhos e em Preferência do Sistema ele demonstra conseguir fazer o que os grandes autores do gênero conseguem: extrapolar a realidade para tecer comentários sobre a contemporaneidade. O autor debate o papel da arte em uma história que traz diversas reflexões ao leitor, além de discutir sobre a composição da arte, sobre como seguir diversas regras para “esterilizá-la” pode torná-la menos questionadora. Ao mesmo tempo, há cenas de perseguição e ação que contrastam muito bem com o aspecto mais filosófico da obra.

A questão levantada por Bienvenu sobre como vamos lidar com a futura limitação de espaço de armazenamento de informações (afinal, esses dados terão que ficar alocados em espaços físicos que são limitados, certo?) é bastante pertinente. Se um determinado filme ou livro possui baixas visualizações, ele deve ser apagado para que as pessoas possam postar mais stories no Instagram? Quem irá julgar qual conteúdo deve ser preservado? Há algo que não deve ser preservado? Parece um pouco distante da nossa realidade esse tipo de questionamento, mas repare como plataformas de streaming produzem e cancelam séries de acordo com algoritmos que medem o interesse do público. Isso não é a basicamente a mesma coisa que o autor especula em sua história?

A arte de Bienvenu tem uma estética muito particular, combinando com o estilo “futuro próximo” proposto pela história com uma forte influência de Pop Art, embora com um aspecto mais sombrio, e lembrando uma animação em alguns momentos, muito por causa do uso das cores. Isso não é por acaso, já que o autor também é animador, além de se aventurar por diversas outras áreas da produção artística. Ele consegue apresentar uma narrativa monótona que combina com a história que está sendo contada, ao mesmo tempo em que consegue impor um ritmo mais intenso em certas cenas. Sem entrar em spoilers, esse quadrinho possui uma das lutas entre robôs mais dinâmicas e empolgantes que eu já vi em qualquer mídia.

Entretanto, em meio a tantos elogios, é necessário apresentar uma crítica à obra. Embora os questionamentos sobre a “esterilização” da arte apresentados por Bienvenu quando ele comenta sobre a abrangência de representatividade na produção artística sejam interessantes, ele apresenta uma resposta no mínimo controversa ao longo da história. Um dos pontos de ruptura e distopia que o autor apresenta na história é que mulheres não precisam mais passar pela gravidez para gerar um filho, visto que isso pode ser feito através de robôs. Ele quer dizer então que o que simboliza uma sociedade comum e feliz é um casal de gente branca com uma mulher grávida? Isso fica ainda mais estranho quando se percebe que não há qualquer diversidade entre os personagens mais importantes na trama. Representatividade vazia não é relevante, claro, mas o posicionamento que o autor apresenta ao seu próprio questionamento é no mínimo esquisito, querendo ressaltar que a demanda por mais diversidade na produção artística é apenas, simplificando bastante, uma chatice. Isso não diminui o impacto do quadrinho, mas é algo que acho importante que o leitor tenha em mente durante a leitura.

O autor vem recebendo reconhecimento tanto do público quanto da crítica. Por Preferência do Sistema, ele recebeu o prestigiado Grande Prêmio da Crítica da ACBD – Associação dos Críticos e Jornalistas de Quadrinhos, um dos maiores da França, e o álbum entrou para a seleção do renomado Festival de Angoulême.  Além disso, Bienvenu é um dos responsáveis pela nova encarnação da revista Métal Hurlant, revista que se tornou famosa devido aos trabalhos de autores como Moebius e Philippe Druillet.

A publicação da Comix Zone possui capa dura, papel couché de boa gramatura e não possui extras. A editora está montando um belo catálogo e merece elogios por apresentar mais um autor ao público brasileiro e por ter prometido, através de Thiago Ferreira, um dos editores e dono da editora, em seu canal no Youtube, a publicação de todas as obras de Bienvenu.

Preferência do Sistema é aquele tipo de obra que fica com você por muito tempo depois da leitura, que faz com que você reflita sobre a sociedade na qual vivemos e elabore diversos questionamentos. Ugo Bienvenu é um autor para se ficar de olho, estou curioso para conferir mais trabalhos dele.

P.S.: Recomendo como complemento desse texto que você confira o ótimo video que Alexandre Linck produziu em seu canal, Quadrinhos na Sarjeta, sobre a obra. Lá ele discute sobre o direcionamento político do autor e como isso se reflete nos pontos que eu levantei durante o texto.

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Ficha técnica

Editora: Comix Zone
Tradução: Fernando Paz
Ano de lançamento: 2021
Páginas: 168
Preço: R$104,90

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Lucas Araújo

Programador, estudante de TI e co-fundador do Justiça Geek. Fanático por quadrinhos, aficionado por filmes e séries, leitor faminto, gamer esporádico e músico (muito) frustrado. Gosta de falar sobre tudo isso em seu tempo livre(ou até mesmo quando não está tão livre...), debatendo questões essenciais para a humanidade como quem vence um crossover entre super- heróis, qual é seu escritor favorito e se um filme foi bem feito.