Social Fiction – Assustadoramente premonitório!

Já mencionei em textos anteriores como é curioso que certos autores, embora muito relevantes e influentes na produção de quadrinhos em outros territórios, são ignorados no mercado brasileiro. Felizmente, nos últimos anos, algumas editoras têm buscado publicar esses autores, fazendo justiça a grandes nomes dos quadrinhos mundiais. Esse é o caso de Social Fiction, quadrinho da autora francesa Chantal Montellier, publicado por aqui pela editora Comix Zone.

Social Fiction compila três das obras mais aclamadas da autora em questão, publicadas entre 1976 e 1983, sendo elas Wonder City, sobre uma cidade que se propõe a ser uma espécie de paraíso na terra, mas que demonstra ser uma espécie de inferno orwelliano, Shelter, uma história sobre pessoas que ficam presas em um shopping após um ataque nuclear e acabam criando uma nova ordem social, e 1996, uma ácida crítica ao consumismo, a desumanização e à forma como nossa sociedade é dividida em classes e preconceitos. As três histórias, como você pode perceber pelas breves sinopses, são uma mistura entre distopia e ficção científica, gêneros com os quais a autora mais gosta de trabalhar.

Aliás, antes de adentrar nos aspectos das histórias em si, é necessário um breve contexto sobre o trabalho de Montellier. Nascida em 1947, a autora iniciou seus trabalhos como quadrinista em 1971, quando colaborou para um jornal sindical em seu país. Se destacou por participar de publicações como Ah! Nana (sendo uma de suas fundadoras), uma importante revista feminista publicada pela Humanoïdes Associés entre 1976 e 1978, e a Métal Hurlant (na qual foram publicadas as histórias contidas em Social Fiction), lendária revista francesa na qual artistas do calibre de Moebius, Phillip Druillet e Richard Corben publicaram seus trabalhos, muito lembrados pelo grande impacto visual. Embora possua um traço menos exuberante do que seus pares, o trabalho de Montellier causou grande impacto na revista em questão devido ao forte posicionamento político e a qualidade de seus roteiros. A artista acredita na arte como ferramenta de atuação política e tem publicado nos últimos 50 anos trabalhos relevantes com esse intuito, embora tenha sacrificado algumas questões em sua carreira para poder manter a integridade de seu trabalho, como ter se abrigado sob o guarda chuva de pequenas editoras, o que acabou diminuindo o alcance de suas obras.

Voltando às histórias contidas em Social Fiction, é impressionante como a autora produziu obras que podem ser consideradas premonitórias, principalmente quando olhamos para os mais recentes acontecimentos tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Montellier debate questões muito atuais e relevantes como a liberdade e direitos das mulheres, principalmente no que tange sobre seus próprios corpos (é impossível ler Wonder City e não traçar paralelos com que está acontecendo nos EUA com relação ao direito ao aborto), a destruição causada pelo neoliberalismo, o consumismo desenfreado e a ordem social. Embora declaradamente socialista, em Shelter, por exemplo, a quadrinista chega a tecer críticas muito claras ao regime soviético, demonstrando que não poupa nem mesmo àqueles que possam habitar o mesmo campo ideológico que ela. Entretanto, alguns leitores um pouco mais obtusos podem interpretar as críticas como um viés infame da “teoria da ferradura”, o que levou a autora a posteriormente publicar Shelter Market, uma espécie de revisão da história que amplia as críticas na direção que a autora queria focar. Infelizmente o álbum ainda é inédito no Brasil e espero que também seja publicado.

Eu mencionei que a arte de Montellier não é tão exuberante quanto a de seus colegas dos tempos de Métal Hurlant, mas isso de forma alguma é uma crítica ao trabalho da artista. Seu traço é muito característico, cheio de identidade e com uma certa áurea punk, que impacta o leitor a cada virada de página. Aliás, é impressionante notar a total sintonia entre roteiro e arte que a autora consegue expressar em seus quadros, não só no aspecto estético, mas também na narrativa que alterna entre o convencional e a quebra de padrões. Simplesmente uma artista do mais alto calibre.

A publicação da editora Comix Zone possui capa dura, papel pólen de boa gramatura e um espetacular prefácio de Natania Nogueira, mestra e doutora em história e membro fundador da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), que contextualiza toda a carreira da autora e sua importância e de onde tirei boa parte das informações contidas nesse texto. Sempre gosto de destacar quando uma editora insere esse tipo de conteúdo em uma publicação, pois enriquece muito a experiência de leitura. A revisão também é competente, não encontrei nenhum problema no decorrer da leitura. A Comix Zone merece elogios não só pelo trabalho competente nesse álbum, mas também por estar resgatando e apresentando autores gigantes para o público brasileiro.

Social Fiction é uma ótima oportunidade para conhecer o trabalho de Chantal Montellier e para refletirmos sobre o que está acontecendo em nossa sociedade. Que essa grande autora seja cada vez mais publicada por aqui, é muito necessária a sua presença no mercado de quadrinhos brasileiros. Um dos melhores quadrinhos publicados esse ano por aqui.

P.S.: Como material adicional, recomendo a entrevista que a autora deu para o Globo quando visitou o Brasil e o vídeo feito pelo Alexandre Linck no canal Quadrinhos na Sarjeta, no qual ele tece comentários muito interessantes sobre Shelter.

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Ficha técnica

Editora: Comix Zone
Tradução: Fernando Paz
Ano de lançamento: 2022
Páginas: 284
Preço: R$84,90

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Lucas Araújo

Programador, estudante de TI e co-fundador do Justiça Geek. Fanático por quadrinhos, aficionado por filmes e séries, leitor faminto, gamer esporádico e músico (muito) frustrado. Gosta de falar sobre tudo isso em seu tempo livre(ou até mesmo quando não está tão livre...), debatendo questões essenciais para a humanidade como quem vence um crossover entre super- heróis, qual é seu escritor favorito e se um filme foi bem feito.