Patos – A dura vida nos campos de petróleo canadenses!

Você já parou pra pensar como muitas vezes temos que deixar alguns de nossos sonhos de lado para poder pagar as contas e lidar com os problemas da vida adulta para seguir em frente? A pergunta, obviamente, é mera retórica, visto que qualquer pessoa que faz parte da classe trabalhadora responderia positivamente, mas é interessante quando autores resolvem usar essa perspectiva em uma obra, seja autobiográfica ou não, fazendo com que pensemos no assunto. É o que Kate Beaton fez em seu mais recente quadrinho, Patos, publicado por aqui pela editora WMF Martins Fontes.

Nesta obra a autora conta sua experiência pessoal trabalhando nos campos de petróleo canadenses para pagar seu financiamento estudantil. Em busca de um bom salário que a ajude a pagar as contas e possibilite que no futuro ela possa exercer uma profissão relacionada à sua formação em Artes e humanidades, ela sai de sua terra natal, Cape Breton, e encara um ambiente em que a proporção entre homens e mulheres chega a cinquenta para uma, permeado pelo machismo e assédio diário.

Kate é muito honesta em seus relatos, ela não esconde nada, desde as piadas que mostram desrespeito pelo simples fato dela ser uma mulher num ambiente majoritariamente masculino até as agressões sexuais que sofreu, que tornaram a experiência traumática sob certo aspecto, mas também demonstra os momentos felizes que ela teve junto às amizades que conseguiu construir. A obra não é um ode à tristeza, longe disso, já que a autora tem um ótimo timing de humor (que remete aos seus primeiros trabalhos publicados na internet), que torna tudo muito contundente, mas não pesado. Isso aproxima o leitor, porque remete a vida de todos nós, que sempre é guiada por altos e baixos, não é mesmo?

Ao contar sua história, Kate acaba falando sobre como o capitalismo nos explora, transformando tudo em mercadoria, destrói o meio ambiente sem escrúpulos e que a noção de liberdade para se fazer o que quiser é uma mera ilusão, às vezes temos que fazer escolhas difíceis simplesmente para sobrevivermos. Há também um forte aspecto humano, conhecemos as condições que os trabalhadores desses lugares possuem, seus medos e anseios e como muitas vezes a solidão os transforma em pessoas completamente diferentes das que estão em casa. Em uma ótima entrevista concedida para o jornalista Érico Assis, ela comenta que espera que sua obra incentive mais obras que abordam a perspectiva da classe operária sobre diversas situações. Em suas palavras: “Quando eu estava fazendo PATOS, fiquei de olho em quadrinhos sobre trabalho na indústria, sobre operariado ou classe, e foi incrível como eu consegui achar poucos. Foi por isso que fiz aquele comentário. Senti que tem muitas histórias que não estão sendo contadas. Discute-se muito privilégio, arte e quadrinhos, discute-se gente que se pinta de artista pobre, mas que teve um empurrãozinho ou um papai rico. Mas também é verdade que há muito quadrinista que veio de origens humildes, sem fortunas nem privilégios. E acho que existe apetite por histórias genuínas. Porque, francamente, a maioria de nós, no mundo moderno, não nasceu na fortuna nem nos privilégios e quer se ver representado sem ser pela lente de quem teve tudo”.

A obra tem mais de 400 páginas e não fica cansativa em nenhum momento. Kate sabe como atrair a atenção do leitor em um “slice of life” que pode parecer enfadonho a primeira olhada, com um traço cheio de personalidade e narrativa competente, utilizando-se em grande parte da tradicional narrativa de nove quadros por página, mas brincando com essa dinâmica ao longo da obra para representar certas situações, sejam de tensão ou de alegria.

Não à toa, a autora recebeu dois prêmios Eisner pela obra em 2022, nas categorias melhor obra autobiográfica em quadrinhos e melhor roteirista/artista, além de um Harvey e o prêmio da crítica na Espanha. O quadrinho também apareceu na tradicional lista de recomendações de Barack Obama (a primeira vez que ele recomendou uma HQ) e entrou na lista de melhores do ano de vários veículos, como New York Times, Guardian e Publishers Weekly.

A edição da WMF Martins Fontes é competente, com formato livro, papel de boa gramatura e com um posfácio da autora comentando sobre a produção da obra sendo o único extra. Uma crítica que faço à editora é que o quadrinho foi publicado por aqui sem qualquer estratégia de divulgação, sendo que foi uma obra super premiada e exaltada em outros mercados. Pra mim é incompreensível que isso tenha acontecido e espero que a editora se atente a isso em seus próximos lançamentos, principalmente os desse calibre, já que é meio difícil que os leitores tenham acesso à obra se sequer saibam que ela foi publicada.

Kate Beaton apresenta um trabalho consistente, que sem sombra de dúvidas a coloca entre os grandes autores contemporâneos dos quadrinhos e fico ansioso para saber o que mais ela pretende publicar. E assim como ela, espero que seu trabalho influencie outras pessoas que tenham origens semelhantes a contarem suas histórias, precisamos que essa perspectiva sobre o mundo seja mais representada não só como personagens mas também como autores.

P.S. Não deixe de conferir a entrevista feita pelo Érico que eu linkei no texto, ajuda a entender melhor como a autora pensa e como Patos foi produzida.

Para comprar esse quadrinho clique AQUI. Ao comprar pelos nossos links você nos ajuda a continuar trazendo Justiça pra Cultura Pop! Ah e sempre tem um desconto bem legal 😉

Ficha Técnica

Editora: WMF Martins Fontes
Tradução: Caroline Chang
Ano de lançamento: 2023
Páginas: 440
Preço: R$99,90

(Visited 26 times, 1 visits today)
The following two tabs change content below.

Lucas Araújo

Programador, estudante de TI e co-fundador do Justiça Geek. Fanático por quadrinhos, aficionado por filmes e séries, leitor faminto, gamer esporádico e músico (muito) frustrado. Gosta de falar sobre tudo isso em seu tempo livre(ou até mesmo quando não está tão livre...), debatendo questões essenciais para a humanidade como quem vence um crossover entre super- heróis, qual é seu escritor favorito e se um filme foi bem feito.