O Eternauta 1969 – Atemporal!

É no mínimo curioso como raramente quadrinhos argentinos são publicados e apreciados por aqui. Embora tenha uma vasta produção e a proximidade geográfica, os quadrinhos produzidos por nossos vizinhos não são tão populares aqui quanto os norte-americanos, europeus e japoneses, por exemplo. Felizmente algumas editoras procuram romper esse estigma e por causa disso temos obras como O Eternauta 1969, quadrinho escrito por Héctor Germán Oesterheld e desenhado por Alberto Breccia, publicadas por aqui.

O nome Eternauta pode não parecer estranho aos seus ouvidos. A obra escrita pelo mesmo Oesterheld nos anos 1950, mas com desenhos de Francisco Solano López, é considerada por muitos como o quadrinho mais importante produzido na Argentina em todos os tempos e um dos grandes clássicos da ficção científica. Uma década após a publicação original, Oesterheld é convidado pela revista Gente (uma espécie de revista Caras da Argentina) a publicar uma versão repaginada da obra, na qual os desenhos com abordagem realista de López deram lugar à arte suja e pesada de Breccia e também com modificações na história que refletiam muito a situação que o país passava na época.

O quadrinho fala sobre uma invasão de Buenos Aires por uma raça alienígena conhecida como Eles. A invasão é acompanhada por uma nevasca mortal, que devasta grande parte da população e modifica a estrutura social. Durante a trama o protagonista Juan Salvo luta contra alienígenas, viaja no tempo e acaba se tornando a última esperança da humanidade. Tudo isso acompanhado de muitas reviravoltas e personagens incríveis e diversos.

Oesterheld é um roteirista brilhante, sem dúvidas um dos maiores de todos os tempos, e em O Eternauta 1969 apresenta uma trama que pode ser apreciada sob diversos aspectos. É possível ler a obra como uma ficção científica com forte influência de H.G. Wells, mas é muito difícil dissociar a história do cenário político argentino à época, que começava a sentir os primeiros efeitos da ditadura instaurada em 1966. É evidente que vários elementos da trama aludem à perda da liberdade, violência, perda de entes queridos e a luta contra a opressão. Isso se torna ainda mais marcante se nos lembrarmos que o próprio roteirista e suas quatro filhas estão entre os 30 mil desaparecidos durante a sanguinária ditadura argentina.

E se você pensa que a relevância e a mensagem do quadrinho se restringem à época em que foi publicado, muito se engana. Basta analisarmos a situação em que vivemos no Brasil, em que temos um governo completamente irresponsável, que exalta a ditadura que tivemos por aqui e que pratica uma política genocida em meio a uma pandemia. Aliás, a pandemia acaba tornando o quadrinho ainda mais atual, já que as situações que os personagens passam e a que estamos passando é muito semelhante, dada as devidas proporções, é claro. A mensagem de Oesterheld continua muito poderosa.

Quanto á arte, Alberto Breccia é um dos maiores artistas de todos os tempos, um verdadeiro mestre do uso de luz e sombra. Sua arte é essencial para transmitir a atmosfera sombria da história, sua narrativa é cadenciada e precisa ao transmitir os acontecimentos e ele é muito hábil em inserir certos elementos que agregam à mensagem que Oesterheld quer transmitir. Repare em como ele quase nunca deixa os rostos dos personagens à mostra, algo que acaba fazendo com que o leitor enxergue os personagens como um espelho e imagine o que faria naquela situação. Um verdadeiro gênio.

O trabalho editorial da Comix Zone merece elogios não só pelo belo acabamento gráfico, mas também para os complementos que eles trouxeram. Há um excelente prefácio escrito por André Pereira de Carvalho, doutor em Sociologia pela UFMG, que contextualiza muito bem a obra, tanto no tempo em que foi escrita quanto nos dias atuais em nosso próprio país. Além disso, há textos complementares que mostram como estava a Argentina na época, o que era publicado na revista Gente e como o conteúdo da revista contrastava muito com o que era visto nos quadrinhos. Aliás, esses textos ajudam a justificar o único ponto negativo que vi na obra, uma certa correria no roteiro para finalizar a história, já que Oesterheld foi muito pressionado pelo editor da revista a finalizá-la o mais rápido possível assim que ele percebeu sobre o que ela estava falando, uma trama que envolve até mesmo uma curiosa carta de um suposto leitor da revista que criticava a arte de Breccia.

O Eternauta 1969 é um quadrinho necessário, uma obra atemporal feita por dois verdadeiros gênios. Embora tenham tentando diversas vezes calar a voz de Oesterheld, fico feliz que ela e muitas outras continuem sendo ouvidas e espero que continuem ecoando por toda a eternidade.

Ficha técnica

Editora : Comix Zone
Ano de lançamento: 2019
Páginas: 64
Preço: R$44,90

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Lucas Araújo

Programador, estudante de TI e co-fundador do Justiça Geek. Fanático por quadrinhos, aficionado por filmes e séries, leitor faminto, gamer esporádico e músico (muito) frustrado. Gosta de falar sobre tudo isso em seu tempo livre(ou até mesmo quando não está tão livre...), debatendo questões essenciais para a humanidade como quem vence um crossover entre super- heróis, qual é seu escritor favorito e se um filme foi bem feito.